sexta-feira, 15 de agosto de 2008

Diário de obra

Três horas da tarde, sol escaldante de dezembro. À minha frente, dez ou doze homens evitam atrapalhar uns aos outros enquanto cumprem suas funções em uma obra que está longe de terminar.
Olhando esta cena, que mais parece uma manobra de guerra, mal consigo disfarçar o contentamento. Para mim é como se fosse uma festa. Modestamente eu diria: é o milagre da criação.
Há cerca de seis meses meu amigo Bezerra resolvera levar adiante a idéia que já há muito discutíamos. Construir um espaço de lazer adequado em seu quintal, que era, apesar de grande, muito mal aproveitado.
Começamos, então, a aprofundar as questões relativas ao projeto em incontáveis reuniões, que eram, neste caso, encontros quase familiares ao redor de uma mesa de almoço. Todos davam idéias, sugeriam, e até os meninos, pequenos, traíam a expectativa de uma piscina.
Algumas semanas e algumas garrafas de vinho depois, determinamos aquilo que chamamos de programa do projeto. Ou seja, decidimos tudo que deveria ou não haver em nossa construção.
Demoliríamos a velha edícula, mal posicionada e mal construída. Demolir, aliás, é uma medida traumática para qualquer cliente. O primeiro pensamento que o inibe é acerca do que ele ou alguém gastou para construir aquilo que hoje é o que se chama de um elefante branco. Qualquer profissional sabe disso e tenta evitar esse tipo de solução. Nesse caso, no entanto, tentar aproveitar a construção já existente seria justificar um erro com outro maior. Vale então um alerta: jamais caia na tentação de construir primeiro a edícula para depois contratar um arquiteto. Só tornará as coisas mais difíceis. Em 99,9% dos casos, aquela edícula não deveria estar ali, acredite.
Bem, voltando ao programa do projeto, resolvemos fazer uma piscina, rodeada por um belo jardim e, no fundo do terreno, um salão que serviria para receber pequenos grupos, amigos íntimos. Não seria uma churrasqueira, como normalmente se faz. Seria um pouco mais.
Meus clientes são entusiastas da boa culinária e desejavam um espaço aonde pudessem dar asas à criatividade sem interferir na praticidade da cozinha do dia- a- dia, a cozinha de dentro de casa.
No salão haveria um fogão à lenha, um cook-top à gás, um formo elétrico e até uma pequena churrasqueira. A execução do fogão à lenha, para minha surpresa, suscitou uma novela, já que, ao contrário do que eu imaginava, fazer um fogão desse tipo é uma arte praticamente esquecida. Hoje em dia só se encontram modelos pré- fabricados e esses não queríamos. Tradição é tradição! A solução só veio depois de muita pesquisa e algumas visitas à cozinhas de fazendas antigas, com direito a fotos e tudo mais.
Faríamos também um pequeno depósito, que nunca é demais e um banheiro, com chuveiro e tudo.
A construção teria ainda, é claro, lugar para uma grande mesa em torno da qual se reuniriam os amigos e, permeando tudo isso, um clima aconchegante proporcionado pelos materiais de acabamento rústicos e pela iluminação controlada.
Quando os primeiros desenhos ficaram prontos, meus clientes, (também compadres) já tinham resolvido reformar também a parte de dentro da casa. Isso é o que chamo de o famoso “já-quê”. Já que vai mexer no quintal ... E lá se vão mais desenhos, mais reuniões, outros desenhos, menos algumas garrafas de vinho sobre a face da terra e pronto. Desenhos aprovados, mão- de- obra contratada, deu-se o início da obra que eu descrevia quando comecei esse post. Resolvemos terminar toda a obra da parte de fora da casa antes de começar as mudanças internas. Se fosse necessário, a família teria nos fundos instalações mais que adequadas para acampar durante as obras na área íntima.
Hoje, simultaneamente à obras de alvenaria, carpintaria, hidráulica e elétrica, estamos escolhendo materiais de acabamento, decidindo a cor das telhas e discutindo pela décima vez o traçado dos canteiros. É uma fase ótima, quando os clientes já estão completamente inteirados da obra, íntimos do processo da construção e mais seguros para opinar sobre tudo. E isso é importantíssimo, pois é a garantia de que as expectativas de todos serão atendidas.
Em meio à essa “confusão ordenada” que é uma obra, penso em como é bom poder viver essa experiência fantástica, que é sonhar e logo em seguida realizar esse sonho. Como é bom viver essa experiência de diversas formas, em diversas circunstâncias, com clientes diversos.
Experimente. Construa. Realize.

quinta-feira, 14 de agosto de 2008

Combina com o Bezerra

Já falei do Bezerra? Grande amigo! Grande Bezerra, com quem tenho tido o prazer de compartilhar bons momentos e ao qual, sempre que chamado, tenho socorrido com meus conhecimentos de arquitetura.
Tenho certeza que já lhes contei a respeito da casa que projetei para ele na praia. Bem, não importa. O fato é que a tal casa foi construída e este caso se deu quando já estávamos na fase de acabamentos. Como de costume, tocamos eu, o referido amigo e a Jupira, sua esposa, para curtir o sabadão numa loja de materiais para construção. Fomos ver pisos, revestimentos (que antigamente chamávamos de azulejo), louças, metais, essas coisas.
Um arquiteto numa loja dessas é como uma criança diante da cristaleira da avó. Quer ver tudo, quer mexer em tudo. Eu mesmo curto demais. A Jupira, idem. Só o marido dela é que não suporta. Vai, para não parecer que não participa, que não está nem aí. Vai a contra-gosto. Anda um pouquinho, escolhe o piso da cozinha e já acha que fez muito. Aí fala :-Pronto! Melhor deixar o resto para outro dia!
-Calma, bem, no outro dia vai ser a mesma coisa.
-Então eu vou no MacDonald’s e vocês ficam aí.
E ela com toda a paciência do mundo:- Calma, bem, já tá acabando...
Continuamos andando de lá para cá e o sujeito com a maior cara de cansado, nem levantava o queixo.
De repente, de uma hora para outra, parece que alguma coisa se acendeu dentro dele. Não que ele tivesse se interessado pelo que fazíamos, isso não. Mas era inegável uma certa euforia repentina.
-Que foi, Bezerra, gostou de alguma coisa?
-Er...bem...não sei se..
-Fala, Bezerrão!
-Não sei se vai combinar...
-Fala, homem de Deus!
-Tá vendo aquela banheira ali? Quando eu era pequeno, lá em casa tinha uma igualzinha.
Era uma banheira que imitava aquelas antigas, de ferro esmaltado. Mas não era daquelas de pezinho. Era daquelas mais simples, das que a gente tem que fazer uma base de alvenaria para embutí-la. Meio tosca, meio grosseirona. E, acreditem, a banheira era azul! E foi essa mesma que ele gostou.
-Mas, bem, não tem nada a ver com a decoração, é tão cafona, não combina com nada. Pergunta para o arquiteto, que ele te diz. Combina, por acaso? – argumentou a esposa, olhando para mim com uma cara de certeza que dava dó.
-Claro que combina, Jupira! Pode não combinar com o banheiro, mas combina com o Bezerra e, pesando os prós e os contras, é mais negócio mudar o banheiro do que trocar de marido, não acha?
Levamos a banheira.
E o Bezerra sorria de orelha a orelha, só faltava bater palmas.

quarta-feira, 13 de agosto de 2008

Umbrella Inc. Ltd.


"Em New York acaba de ser fundada uma sociedade, com enorme capital, denominada: “Para que se molharem?” As suas operações consistem exclusivamente em empréstimo de guardas-chuva, tendo a sociedade por idéia evitar às pessoas o incommodo de sahirem de casa com um guarda-chuva, que sempre atrapalha. Mediante a quantia de um dólar por anno, fornece a sociedade aos seus freguezes uma ficha de alumínio com um número. Em caso de chuva o portador da ficha não tem senão que entrar num café, numa charutaria ou num restaurante, entregal-a e receber um bom guarda-chuva. Cessou de chover, é praticar a operação inversa, não importa o ponto da operosa capital em que se achar o freguez.
Vão crear succursaes nas grandes cidades dos estados unidos.
Mesmo que uma tal instituição fosse simples pilhéria, seria engenhosa e prática."


Retirada da “Revista Universal”, de 10 de junho de 1902

Uma boa do Dr. Anúbis

Eu dava aulas em um curso de pós- graduação em Campos do Jordão. Era um curso de dois anos de Administração Hoteleira e minha disciplina era “Planejamento Físico de Hotéis”, aonde eu dava uma noção de dimensionamento de espaços, fluxo de circulações, etc. Apenas uma noção, que era para a assistência fazer uma idéia da responsabilidade que envolve o projeto e das conseqüências de uma má escolha.
Os alunos vinham de cidades da região – o vale do Paraíba – e formavam um grupo muito heterogêneo. Eram, na sua maioria, profissionais insatisfeitos em suas carreiras que procuravam no curso um embasamento teórico para montarem e administrarem um pequeno hotel no mato, uma pousadinha na praia, coisas assim.
Entre esses alunos havia dentistas, psicólogos, veterinários, arquitetos, economistas, advogados e um médico. Justamente esse médico vem a ser o personagem deste caso. Dr. Anúbis Guardião.
Um belo dia de inverno em Campos do Jordão, no intervalo de um inocente café, ele me chega, meio sem graça, e fala:
“- Bom dia, professor. Será que você teria um tempinho para tirar uma dúvida?”
E o doutor contou uma longa estória de como comprou um terreno em Caraguatatuba, do sacrifício que foi, dos sonhos que tinha, e tal e coisa. Resumindo, ele queria construir um hotelzinho e se mudar de vez para o litoral. Só que, por mais que se esforçasse e prestasse atenção nas aulas, não se sentia seguro para projetar o hotel.
“- Além de tudo, desenho mal pra burro, professor.”
Opa! O cara não tinha entendido absolutamente nada!
“Doutor! Não é que eu queira puxar a sardinha para o meu lado, mas você tem que contratar um arquiteto! Não há meio de um médico projetar um hotel! É a mesma coisa que um arquiteto operar um apêndice. Vê lá..!”
O coitado ficou meio sem graça mas entendeu. Depois disso ficamos amigos e, vira e mexe, tomávamos café juntos. Foi numa dessas ocasiões que o Dr. Anúbis me ensinou uma boa.
Eu comentava que era comum as pessoas me encontrarem em festas, reuniões de família, e pedirem conselhos sobre reformas de imóveis. Imóveis que eu nunca vira, não tinha a menor idéia de como fosse, e o cara:
“- Que é que você acha de fazer a escada meio assim?” e indicava com a mão como se desenhasse no ar.
“- Sei lá!” e a pessoa saía ofendida como se eu tivesse a pior das más vontades. Achava mesquinharia. As pessoas não entendem que um profissional não dá palpite. Sendo seu ofício, qualquer opinião envolve responsabilidade, tem que estar bem embasada, e é trabalho.
“- Faz como eu.” Ele disse. Aquela tia chega, no meio do batizado, e reclama de dor no abdômen. Que saber que remédio toma. “- Antigamente eu penava. Agora mando logo: - Tira a roupa, tia.”
“Como?!”
“Tira a roupa para eu poder examinar.”
“Mas aqui?”
“Bem, se a senhora preferir, passe no meu consultório durante a semana.”
“Ah...”
Bom, agora já sei. Me parou na rua para perguntar a respeito do telhado, se é assim ou se é assado, não titubeio.
“- Tira a roupa!”